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Inspiração artística: como foi a palestra com Berna Reale em Caxias do Sul


Informação, inspiração e muita força de vontade. É assim que surgem os incríveis trabalhos artísticos de Berna Reale. A artista visual paraense, por meio do uso de seu corpo, faz intervenções e instalações muito realistas, baseadas em códigos simples, para criticar a sociedade que vivemos, seja a banalização da violência, seja os políticos que navegam acima do lodo em um rio de imunidade. Ela esteve em Caxias do Sul em março a convite da universidade (UCS), e falou sobre “Processo criativo: a importância dos erros”.

Durante sua fala, Berna mostrou os seus trabalhos, de uma forma inusitada: explicou como foi se desenvolvendo cada ideia, mostrando o que deu certo e o que deu errado. Desta forma, humanizou o seu processo, mostrando que mesmo gênios artísticos inspirados também precisam batalhar e muito para concretizar um projeto. Não poderia ter sido mais inspirador para a plateia lotada de alunos do Campus 8, o campus das artes da Universidade de Caxias do Sul. Afinal, ao demonstrar que nada é fácil nem para ela, que já é uma artista consagrada, seja em termos financeiros, seja em termos de execução, mostrou que nenhuma ideia nasce pronta, mas que com determinação de superar obstáculos e sobrepujar os erros, é possível sim realizar grandes feitos.

“Nós artistas somos muito orgulhosos, a gente mostra só o que já deu certo, o que já vendeu. Mas abrir o processo criativo é muito importante”. (Berna Reale)

Assim Berna foi mostrando os trabalhos de sua carreira. Um dos trabalhos mostrados foi uma intervenção em frente ao Mercado Ver o Peso, no Pará. Ela deitou em cima de uma maca, nua, e colocou pedaços de carne em cima de seu corpo, esperando que os urubus viessem buscar o alimento. O resultado é uma foto impressionante, de seu corpo rodeado de aves carniceiras. Berna contou que sempre faz muitos testes antes de uma intervenção, já que, trabalhando sempre no limite do dinheiro, não pode se dar ao luxo de refazer produções. Neste dos urubus, ela ficou com medo que as aves não viessem, e assim mandou empalhar dois deles que encontrou mortos para simular na intervenção, se fosse necessário. A artista sempre avisa as autoridades de todos os passos de seus projetos antes da execução. Neste caso, tudo deu errado: o Ibama não autorizou a utilização dos espécimes empalhados, alegando que era crime ambiental. Berna enfrentou um processo de nove anos na justiça, até ser inocentada. Mesmo assim, ela fez a performance artística, e a cena correu naturalmente, sem a necessidade das aves empalhadas.

Muitos de seus trabalhos também brincam entre a ironia e o surreal. Em um deles, ela conduz uma biga puxada por porcos em meio a uma favela, mostrando uma relação do que é a política brasileira. Em outro, conduz uma canoa por um canal de esgoto, e esta canoa está infestada de ratos brancos, representando os crimes de colarinho branco com os roedores, enquanto os políticos se mantém imunes no rio de lodo pelo qual navegam. Ainda, há um trabalho que representa a morte, mas está vestida como se fosse uma porta-bandeira de escola de samba, representando de uma forma irônica a banalização da violência, como se todas as mortes fossem uma festa de carnaval, e não uma tragédia.

Em um de seus trabalhos mais emblemáticos, ela estendeu um tapete vermelho por cima de um lixão, e dançou a famosa música “Dançando na Chuva”, vestida de dourado, com uma máscara anti-gás no rosto, simbolizando o país absurdo no qual vivemos, no qual o luxo sapateia em cima dos outros.

“Acho que este é um dos objetivos da arte.

É poder falar por meio da arte dos absurdos da vida”. (Berna Reale)

Outros trabalhos são mais dramáticos. Há uma intervenção na qual pintou um cavalo da polícia de vermelho, e Berna desfilou com ele pelas ruas com uma armação de metal ao redor da boca, simbolizando a extrema violência da polícia montada. Em outro, completamente nua, ela se deixou amarrar por pulsos e tornozelos, e foi assim carregada pelas ruas, por homens com roupas de açougueiro, que a retiravam e a colocavam em um caminhão frigorífico, chocando a população das ruas pelas quais passava, pois parecia realmente uma carne morta. Ou ainda uma intervenção numa fábrica na qual enxugava gelo, o que causa uma agonia no espectador por ser um trabalho inesgotável, representando mulheres e transexuais que lutam uma luta sem fim para tentar ser igual em um país em que todos acreditam que precisam se adequar aos padrões.

Em todos esses exemplos, e muitos outros, Berna explicou o seu processo, e foi dizendo o que deu errado, o que precisou ser refeito, e qual foi o resultado final. Seus trabalhos são sempre intervenções na realidade, nas ruas, favelas, presídios, e ela utiliza a fotografia e o vídeo apenas como uma forma de registro. Sendo assim, ela sempre executa seus trabalhos nas ruas, pois a interessa essa interação e reação das pessoas que não estão acostumadas à arte, e que estranham esses movimentos.

“Já sofri críticas de que meu trabalho é muito simples. Mas não me interessam símbolos complicados. Sempre faço nas ruas, e só depois exibo nas galerias, nunca faço nada dentro das galerias. Pois as pessoas que estão dentro destes espaços expositivos já têm os códigos pra entender aquela arte. Na rua, as pessoas são espontâneas. Quero que a pessoa comum tente entender, e quero essa reação espontânea”. (Berna Reale)

A artista paraense falou ainda sobre a educação e a academia no processo criativo. Berna é formada em artes pela Universidade Federal do Pará, mas também é perita criminal no Pará – e esta vivência lhe trouxe muita experiência de vida que transparece em sua arte e em suas críticas à sociedade. Durante a palestra, ela explicou que para cada nova ideia, escreve um projeto, e estuda muito sobre o tema, sobretudo os símbolos semióticos a qual está ligada a sua proposta. Mas este estudo não é formal: pesquisa em livros, revistas, mas também está atenta às conversas e opiniões das pessoas ao seu redor.

“Só sou organizada na produção, no restante sou caótica. Meu trabalho não é sistematizado. Tudo vai te trazer pra ideia que você está pensando, cada livro, cada revista, cada conversa te leva para essa ideia”. (Berna Reale)

Mesmo ressaltando a importância do estudo, Berna alertou para que a universidade, os cursos formais, podem tentar formatar o artista dentro de certas normas, o que acaba sendo perigoso para a criação.

“A academia pode enquadrar e bloquear. Ela lhe formata se você não toma cuidado. A formatação é contra a criação. Fuja da universidade depois de determinado estágio se você quer ser artista. Em um certo ponto, a criação e a educação se unem para lhe dar a base, a academia é importante para te dar a formação, e até para você entender que não está reiventando a roda, muitos já tiveram ideias como as suas antes. Assim você não acha que está fazendo algo completamente novo”. (Berna Reale)

Quando questionada sobre a importância do curador, a artista explicou que acredita que este profissional, por ver centenas de trabalhos de artistas diferentes, acaba por te ajudar a caminhar melhor. E é ele que legitima seu trabalho, abre portas para espaços expositivos. Berna explicou que nunca soube direito o valor de seu trabalho, sempre costumava dar suas obras, até que começou a ser convidada por galerias para vender. E assim foi errando e se adaptando também a este mundo.

“O acontecimento de seu trabalho sempre tem que ser o mais importante. O legal é arranjar canoa, correr atrás da compra dos ratos. Quando o dinheiro vem à frente, aí é que as coisas começam a desandar.” (Berna Reale)

Para ilustrar o que estava falando, Berna contou uma história de quando, durante a montagem de uma exposição sua, um montador lhe disse que seu sonho era ter uma dessas obras um dia em sua casa. Ao final do período da exposição, ela pediu a ele que escolhesse qual delas queria para levar embora.

“A alegria dele ao poder escolher uma obra minha para levar para casa tinha que valer mais do que o dinheiro que fiz com as vendas das obras na exposição”. (Berna Reale)

Ter Berna Reale em Caxias do Sul foi, de fato, um privilégio para a plateia de mais de 500 pessoas que a aplaudiram de pé no auditório. A artista inspirou não só os alunos, mas qualquer pessoa que olhe o seu trabalho e entenda a perseverança que é necessária para se destacar na arte no Brasil. Palestras como esta nos engrandecem como pessoas, como cidade, e trazem inspiração, paixão e cor ao dias cinzentos do clima caxiense.

Texto: Sabrina Didoné (jornalista - 0018277/RS) e Liliane Giordano (mestre em Educação: arte, linguagem e tecnologia)

Fotos: Berna Reale/divulgação

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