Resistir. Resistir sempre. Trabalhar com arte e com cultura, em qualquer parte do mundo, não é fácil. É sempre uma contestação – e esse é um dos próprios papéis da arte e da cultura. Mas mesmo assim, o que não podemos é nos entregar. Há que se continuar, de um jeito de outro.
Esta foi a reflexão que fizemos após a 16ª edição do festival de fotografia Canela Foto Workshops. Pensamos em tudo isso porque, neste ano, o “workshops” ficou apenas no nome do evento. Apesar de consolidado no cenário nacional – afinal, já sobrevive há mais de uma década e meia, neste ano o evento não realizou os tradicionais workshops de fotografia, mas se reinventou, e não deixou de realizar dias de grandes encontros na cidade da Serra Gaúcha.
Acompanhamos o sábado do festival - que ocorreu de 26 a 29 de julho de 2018 no Grande Hotel Canela. Neste dia, a programação se dedicou a gravar novos episódios da web série Causos: fotos + fatos = história. Nos vídeos do projeto elaborado pelo Canela Instituto de Fotografia, fotógrafos contam histórias marcantes da sua profissão, a partir de três fotos que registraram. Antes das gravações, foram exibidos vídeos já prontos, com os fotógrafos Luiz Carlos Felizardo, Ruy Varella e Jacqueline Joner. Eles já estão disponíveis na internet, assista neste link
“Elaboramos este projeto pois temos a convicção que nós, fotógrafos que documentam a história do Brasil, são formadores de História”, Fernando Bueno (fotógrafo e coordenador do festival)
Confira abaixo alguns causos contados no sábado de festival.
Encontro de mestres no Canela Foto Workshops 2018: Walter Firmo e Luiz Carlos Felizardo
Marcas do tempo
A fotógrafa Eneida Serrano foi a primeira a contar suas histórias neste sábado de Canela Foto Workshops, sob a mediação do jornalista Roger Lerina. Ela explicou que as fotos que escolheu tem como tema o tempo.
Eneida explicou que a primeira foto que escolheu faz parte de um projeto, que gerou uma exposição chamada de “Interiores” – ganhadora do prêmio Açorianos de 2007 nesta categoria. Nele, a fotógrafa registra o interior de casas, para assim, através dos espaços, revelar a identidade dos seus moradores sem fotografá-los diretamente, apenas capturando os seus vestígios nesses lares. Na foto em questão, ela retratou Alice, em Bento Gonçalves, que tinha mais de 90 anos. Ela faleceu apenas uma semana depois do registro.
A sua segunda escolha foi por uma foto da família do escritor Luis Fernando Veríssimo. Eneida o retratou nos anos 1990 para a Revista Caras com a sua família, que ainda estava com apenas cinco pessoas. Então, em 2016, quando ela fez esta foto em questão, já eram 10 pessoas, 23 anos depois da primeira. “Fotografei muitas vezes o Veríssimo, mas queria fazer a família toda novamente, e mostrar essa marca do tempo”, explica Eneida.
A terceira foto escolhida por ela é uma sobreposição de um autorretrato: a fotógrafa sobrepôs duas imagens, a primeira de uma sombra dela na praia atualmente, a segunda de quando ela era criança, também na praia. Ela explicou que há 60 anos de distância entre os dois elementos que compõem esta nova foto criada pela sobreposição. O cenário também é significativo: é a Praia Atlântida, onde Eneida passou os verões de sua infância.
“Existe um autorretrato, um autor, em cada foto que você faz. Não interessa o meio, mas o resultado: já não digo mais se faço com celular ou com equipamentos que pesam no ombro. Olhar é um exercício, quanto mais tu fizer e olhar, mais vai descobrir. É isso que me move. Não existe coisa mais fotogênica que outra. Eu resisto com conceito de coisas fotogênicas. Eu gosto do que não rende foto, esse diferente me move.” Eneida Serrano
A fotógrafa ainda falou sobre a ligação da fotografia com a realidade.
“Cada vez menos tenho observado esse vínculo com realidade, mas vejo mais importância no modo de ver. Com minhas fotos você pode perceber por onde eu ando. Mas o mais importante é como eu vejo por onde eu ando, não por onde ando. Errância e aceitar o acaso é também muito produtivo. Em qualquer lugar pode ter oportunidade de transformar um corriqueiro numa foto que permanece e se transforma em outra coisa.” Eneida Serrano
Fotojornalismo
O convidado seguinte do projeto Causos: fotos + fatos = história foi Ricardo Chaves, o Kadão, fotojornalista com carreira de mais de 40 anos – com a mediação de Enio Martins. E história é o que não falta a Kadão, ele falou por horas, mas a plateia continuou grudada em cada palavra sua: a narrativa era cheia de detalhes interessantes, aventuras, contextos de época.
A primeira foto escolhida por ele foi quando o Brizola no período do exílio no Uruguai. O jornalista tinha uma ligação pessoal com o político: seu pai era secretário de Brizola, e participou da rádio Legalidade – que foi uma trasmissão diretamente do porão do Palácio Piratini, num protesto de Brizola contra a tentativa de golpe. Em 1964, seu pai foi preso por causa da ditadura.
“Quem acha que ditadura é boa, tem que ler os livros de história e repensar,
porque o bicho pega pra todo mundo.” Kadão Chaves
Kadão cobriu duas pautas com Brizola, a primeira delas foi quando, aos 23 anos de idade, foi a Montevidéu no dia em que completavam dez anos do exílio do político. E a segunda pauta foi quando Brizola retornou ao Brasil, cinco anos depois. Kadão o fotografou em sua chegada épica em São Borja. Na época, ele trabalhava para a revista Veja, que pagou para seus filmes irem direto de Porto Alegre a São Paulo de avião. Em época de negativos em filme, a primeira vez que Kadão viu a sua foto foi já na capa da publicação.
A segunda foto escolhida por Kadão para o projeto foi a da visita do Papa João Paulo II ao Brasil. Na imagem, lado a lado, se veem sapatos de políticos e o de um menino com sapatos velhos e pernas enlameadas. O fotógrafo contou que quando o Papa veio ao Brasil pela terceira ou quarta vez, ele trabalhava na agência do Estado de São Paulo, e assim acompanhou o Pontífice por diversas cidades do país. Em Goiânia, depois da missa, as autoridades estavam nos seus lugares marcados, até que um garoto invadiu este espaço. Ele queria pedir uma bicicleta para o Papa, e o governador permitiu que ele ficasse ali.
“Eu estava na área da imprensa, fiquei pensando, que país é esse, garoto com dedão pra fora, foi me dando um sentimento ruim. E então o garoto dá um abraço no papa. Caí no choro. Um fotógrafo italiano pediu porque eu chorava, se a foto era ruim. Eu disse a ele: a foto é boa,
o país é que é uma merda.” Kadão Chaves
A terceira foto de Kadão foi a de um acidente de avião ocorrido em Mato Grosso em 1989, devido a um erro de navegação. O piloto primeiramente foi taxado como herói, por fazer pouso forçado, mas um passageiro ouviu o comandante falando que tinha errado a rota, o que ocasionou a falta de combustível antes de chegar ao aeroporto. O avião caiu em um local isolado, de mata fechada. Quando Kadão chegou ao local da fazenda, que virou o ponto mais próximo para o resgate, ele conseguiu ir a pé até o local, mas não era permitido fotografar. Apenas no dia seguinte foi dada a permissão total, quando ele não conseguiria mais voltar ao local do acidente. Para resolver o problema, o jornalista pediu o filme de um tenente do exército que tinha fotografado de forma amadora, e assim conseguiu a foto perfeita para a capa do jornal no dia seguinte.
Ligação com o Pampa
O convidado seguinte da tarde de sábado do Canela Foto Workshops foi o fotógrafo Leonid Streliaev, o Uda, com mediação de Fernando Bueno.
Uda contou diversas histórias da época que foi fotojornalista em veículos como o jornal Zero Hora e a Revista Veja. Ele sempre viajou muito por todo o Rio Grande do Sul, cobrindo mais de dois mil quilômetros por mês. Por isso que a primeira foto que exibiu foi a de uma estátua de um cavalo no pampa, região bem conhecida para ele. Tanto que gosta de imaginar que influenciou um pouco a obra do escritor Erico Verissimo, pois as histórias que contava aos amigos estavam repletas dos cenários que depois aparecem nos livros. Para homenagear o escritor, Uda lançou um livro com uma releitura fotográfica de O Tempo e o Vento, chamado de “O Rio Grande do Veríssimo”.
“Minha alma de fotógrafo foi forjada na força do jornalismo.” Leonid Streliaev (Uda)
A segunda foto escolhida por Uda foi a da cobertura jornalística mais importante de sua vida: a morte do presidente argentino Juan Perón, em 1974. Uda estava na Argentina para a cobertura de um jogo do Brasil com o país vizinho, quando foi surpreendido pela notícia da morte do presidente.
“Essa fotografia jornalística você não consegue pensar muito, tem que pegar na hora. Fotógrafo tem que estar permanentemente ligado.” Leonid Streliaev (Uda)
Uda também falou sobre a sua amizade com Mário Quintana, e como fotografou o poeta em algumas ocasiões.
“Conseguimos fazer com que o Quintana morasse em um lugar melhor, pra ele viver bem e produzir em seus últimos anos. O jornalismo é uma chave, ele abre portas de uma forma impressionante.” Leonid Streliaev (Uda)
Atualmente, Uda não trabalha mais com fotojornalismo. Ele atua em publicações especiais, como o livro de Gramado, mostrando raízes da colônia, gastronomia, gente da terra.
Mestre
O último convidado do sábado do Canela Foto Workshops 2018 foi o fotógrafo Walter Firmo, considerado um mestre da fotografia colorida. A mediação dos causos ficou a cargo de Mozart Mesquista, da Revista Fhox. Surpreendentemente, Firmo apresentou duas fotos em preto e branco.
“Estou hoje mais na sedução do silêncio do preto e branco do que na algazarra da foto colorida.” Walter Firmo
Ao contar a história de duas fotos suas, uma de um palhaço dando um salto como fazia no circo, e outra de sombras durante uma fuga de presos, Walter foi taxativo: “A fotografia é a maior mentira que existe”. Isto porque ele pediu para o palhaço dar aquele pulo.
“Por que essa obrigatoriedade da fotografia ser verdadeira? Eu estava fazendo fotos de uma fuga de presos na comunidade da Mangueira. Estava tirando fotos de sombra, ouvi policiais se aproximando, pensei, ah se eles passassem! E passaram correndo com as armas. E o que é verdade o que é mentira? Podia ter pedido aos policiais para posarem para a foto.” Walter Firmo
O que Walter conta nessa história vem de encontro ao conselho dado por Roberta Tavares, produtora cultural e codiretora da caravana da Magnum no Congresso Fotografar 2018: um fotógrafo preparado prevê, materializa sua foto muito antes dela ser concebida.
“Me considero um poeta da imagem. Estou me redescobrindo. Quando vejo imagem na rua, uso o celular, faço coisas que não faria com minha câmera. Você começa a viver uma outra vertente fotográfica que não te deixa envelhecer, pois participa dessa loucura que se instalou em que todo
mundo agora fotografa.” Walter Firmo
Já havíamos assistido a outra palestra de Walter Firmo durante o festival de fotografia Paraty em Foco 2017. Clique aqui para ler o que o fotógrafo contou naquela ocasião.
Conclusões finais
Ainda durante o Canela Foto Workshops 2018, conferimos a exposição do mestre Luiz Carlos Felizardo, no Arte na Cerca – que coloca fotografias literalmente na cerca para que os moradores da cidade também se integrem com o festival. Participamos também do coquetel de lançamento do Livro de Canela 2018. E também vimos a emocionante homenagem ao fotógrafo Rodrigo Baleia, falecido neste ano. Ainda na sexta-feira do festival, estivemos presentes na abertura da Exposição Lunara com apoio do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, com curadoria de André Severo.
O Canela Foto Workshops é um importante festival, que todos os anos reúne grandes lendas da fotografia para falar ao público de forma gratuita. Neste ano, estes mestres nos derem um vislumbre de como era o fotojornalismo nas décadas passadas, e nos mostraram a grande influência que tinham em registrar diretamente a história do Brasil. O projeto Causos: fotos + fatos = história presta um grande serviço ao registrar as memórias destes profissionais, perpetuando suas vivências e experiências para as próximas gerações, transformando eles, por sua vez, em história.
Texto: Sabrina Didoné (jornalista - 0018277/RS) e Liliane Giordano (mestre em Educação: arte, linguagem e tecnologia)
Fotos: Liliane Giordano