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Sala de Fotografia analisa: FestFoto POA 2019

Discutir algo muito além da fotografia, trazendo a arte de captura das imagens para o seu posicionamento político na sociedade em que vivemos. Assim foi o FestFoto 2019, a 12ª edição do Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre. E nada mais contemporâneo do que o tema trazido pelo evento: “Da Diáspora: Identidade, Hibridismo, Diferença”. Na verdade, a imigração e o movimento dos povos sempre são atuais, já que o ser humano, desde que saiu da África e colonizou todo o planeta, nunca deixou de se movimentar. O que é novo é a forma que tentamos lidar com isso – proibindo ou permitindo, criando novas leis mais flexíveis ou erguendo novos muros.


Confira abaixo o que mais a Sala de Fotografia acompanhou no evento, de 27 de abril a 1º de maio. Neste ano, o FestFoto mudou de casa, e ocorreu na Fundação Iberê Camargo – uma edificação criada especialmente para a arte. Lá, estavam diversas exposições, que contaram com 42 artistas de 13 países.



Residência Artística

O FestFoto 2019 trouxe um elemento de inclusão e de incentivo a fotógrafos muito importante: as residências artísticas. Ao longo do semestre, os selecionados puderam construir um projeto com supervisão e auxílio da organização do Festival. O resultado dos trabalhos estavam em exposição no evento, e também foram tema de diversas mesas de discussão.


Uma delas foi a palestra “Um conto haitiano”, com o fotógrafo Mateus Bruxel e Maxony Vertu, com mediação de Maria Helena Bernardes. Mateus contou como começou seu envolvimento com Maxony: o haitiano estava chegando ao Brasil, quando Mateus o encontrou no Acre durante uma pauta para o Jornal Zero Hora em 2015 sobre o fluxo imigratório. Mateus fez uma viagem de três dias com esses imigrantes. Mais tarde, soube que Maxony veio morar em Porto Alegre, mas perdeu o seu contato. O fotógrafo contou que este trabalho lhe gerou uma inquietação, pois ele tinha vontade de reencontrar estes imigrantes e saber como estava a vida deles agora.


Com o auxílio de um centro que dá apoio a imigrantes em Porto Alegre, Mateus conseguiu reencontrar Maxony. E descobriu uma pessoa muito alegre e sorridente – que quando chegou ao Brasil estava muito sério, fruto da dura jornada para chegar ao país, que só alcançou depois de 22 dias. E Maxony sugeriu a Mateus que agora que ele já falava português, queria fazer um filme, contar a sua história. O projeto, então, é assinado por ambos, o que cabia na ideia do fotógrafo, pois esta era a oportunidade de Maxony ter voz ativa, estar falando e atuando na sua história, e não apenas estar nas paredes do museu na exposição.


“É uma questão da empatia de olhar pro outro como alguém importante. Antes de ser jornalista fotógrafo, sou um ser humano, e a empatia vem antes de tudo.” Mateus Bruxel

Maxony e um primo já tinham filmagens feitas com celular prontas, que Mateus utilizou neste projeto. Assim, eles contam sobre a terrível travessia até aqui, via República Dominicana, Colômbia, Equador, Peru e por fim, Brasil. O filme é um testemunho sobre a vida de imigrante, um relato sobre o que viveu. Mescla, assim, Maxony contando algumas coisas pelas quais passou com filmagens feitas por eles em sua casa em Porto Alegre, em uma espécie de ficção documental.


“No jornalismo, estamos acostumados a contar verdades, mas Maxony me ensina a potência da ficção de contar uma história. Não é mais a verdade, mas uma das verdades - contam histórias por elementos que são manipulados, e assim mais que trazer uma mensagem, também carregam uma voz.” Mateus Bruxel

Diáspora cristã

Outro trabalho selecionado para a residência artística foi o de Ursula Jahn, que compartilhou a mesa com Rochele Zandavalli. Ursula também se apropriou do vídeo para mostrar o seu projeto: na obra, intitulada “GÊNESIS 3:5-6” ela separa os ingredientes, faz a massa e todo o processo de trabalho de uma torta de maçã, e então come a torta, pedaço por pedaço, até o fim. Sua ideia é demonstrar que a mulher geralmente cozinha para servir a alguém, mas na sua obra, ela cozinha para servir a si mesma. Sua inspiração vem do Gênesis, livro da Bíblia, e do fardo que as mulheres ainda carregam da diáspora humana da expulsão do paraíso. Assista ao vídeo no site.

“Ainda há culpa na mulher na nossa sociedade por ter comido a maçã. No vídeo, devoro completamente a torta de maçã pra nos livrar da culpa que nós mulheres carregamos nessa sociedade, como se violência sexual e doméstica fosse nossa culpa. Ou seja: ser Eva quando nos queriam Maria.” Ursula Jahn

Foi muito interessante ver este projeto no FestFoto já que, quando pensamos em diáspora, tendemos a relacionar com as imigrações atuais. Ursula traz um outro tipo de diáspora, ou seja, a diáspora fundamental de todo ser humano, de acordo com cristianismo, que é a expulsão do paraíso, e a culpa que a mulher carrega nessa sociedade.

Já a artista Rochele Zandavalli participou da mesa ao lado de Ursula devido a ligação dos temas de seus trabalhos. Em um de seus projetos mais recentes, Rochelle se apropriou de imagens que mostrassem mamilos nas redes sociais – imagens estas que estavam sendo censuradas, e que gerou protestos mundiais por meio da hashtag #freetheniple. Isto porque o algoritmo bloqueava as fotos mais pelo mamilo em si, e não pelo contexto de sexualização. O mamilo nem sempre é representativo de pornografia, mas sim da própria natureza feminina. Depois, ela fez um vídeo com todas essas fotos que copiou da internet, que também foi censurado, apesar de ela ter tido o cuidado de não mostrar nenhum mamilo no projeto. Assista ao vídeo no site.


Descendência

“Pequena Alemanha” foi mais uma palestra com convidadas da seleção de residências artísticas do Fest Foto POA 2019 que a Sala de Fotografia acompanhou, composta por Bruna Engel e Larissa Hansen.

O projeto de Bruna remonta às suas raízes: ela retratou e pesquisou comunidades formadas por descendentes de alemães nas cidades de Montenegro, Pareci Novo, Maratá e Nova Petrópolis, região onde sua família reside. O projeto nasceu de sua estranheza quanto ao nacionalismo alemão ainda muito forte nestas localidades, que carrega um orgulho de sua descendência germânica, apesar de às vezes já ser a sétima geração a nascer em território brasileiro.


Bruna explicou que, no início do novo século, tivemos uma nova onda imigrante com ideias germanistas, querendo fundar uma nação alemã para além mar. E é uma ideia que vem pela cultura, por meio da dança, da música, da gastronomia. É por isso que as tradições são tão fortes até hoje: filhos e netos viveram isso e ainda preservam os costumes. De 1820 a 1930, mais de 200 mil imigrantes vieram ao Brasil, e o Rio Grande do Sul alocou mais de 50% dessa população.

O trabalho de Bruna foi muito interessante de se acompanhar. Foi um ótimo trabalho de pesquisa, pois partiu de uma inquietação sua: para além de só fotografar, aproveitou uma realidade que ela via e foi pesquisar porque era assim para construir seu ensaio. Essa é uma fotografia que tem diferencial, e que pode chamar a atenção do espectador para muitas coisas que permeiam nossa realidade ainda hoje. Também chama a atenção que ela fez algo rompendo com suas tradições, ao invés de só exaltar suas origens, em uma verdadeira revisão das coisas que lhe incomodavam. Bruna deixou claro que não queria criticar nada desta cultura, apenas gostaria de entender porque esse sentimento nacionalista ainda era tão forte ali.

“Não criminalizo essa prática cultural da qual eu também faço parte. Minha crítica é a aura de superioridade. Quero ajudar a quebrar o estereótipo romântico que existe nessa descendência. E só se quebra ao se mostrar.” Bruna Engel

Já Larissa Hansen fez um projeto de exaltação de suas origens. Ela contou que é de Tupandi, e que sentiu preconceito ao chegar na universidade, como se por ser do interior, seu lugar não fosse ali. Assim, começou a fotografar seu entorno, seu pais agricultores. Seu objetivo era mostrar outros saberes, quebrando a ideia de que pessoas do interior não podem ocupar espaços intelectuais ou que sabem menos do que pessoas que vivem em metrópoles. No fim, produziu um vídeo que mostra o cotidiano no interior, falado em dialeto alemão com legendas em português, nos quais os personagens são seus pais, Pedro e Lúcia, no seu trabalho cotidiano.

“A realidade é muito subjetiva, mas por eu crescer naquele lugar me pareceu sempre que aquilo era real. Sempre me perguntei porque eu fotografo o que fotografo. Por ter crescido naquele ambiente, não precisei me livrar de estereótipos pra fotografar. E geralmente o fotógrafo registra o outro, mas eu não fotografei o outro, fotografei a mim mesma.” Larissa Hansen

Em um momento marcante do festival, a professora de fotografia Marina Chiapinotto, que estava na plateia, deu voz aos personagens do vídeo, exaltando que a fotografia e arte cumprem seu papel nesses deslocamentos, já que Pedro e Lúcia vieram do interior para ingressar pela primeira vez no cubo branco (como são chamadas as galerias de arte). Talvez a frase mais marcante do vídeo tenha sido dita pela mãe de Larissa, Lúcia: “eu sempre digo que ninguém volta para casa mais bobo do que saiu”. Frase de sabedoria simples, mas que não poderia traduzir melhor o que sentimos nestes dias de FestFoto 2019.


Larissa exalta suas origens, querendo mostrar a todos que de onde vem é bom, de uma forma bucólica, nostálgica. O que não a desqualifica, porque, tal como Bruna, ajuda a quebrar um estereótipo, neste caso, de achar que quem está no interior é ingênuo. Na obra dela, notamos uma espécie de retrato em vídeo como vimos no evento Jornadas 11, no Uruguai, na apresentação de Marcelo Barbalho na sua tese de doutorado. Nos retratos filmados, a câmera fica parada, e os personagens se colocam como se estivessem sendo fotografados. Eles são uma volta a longa exposição na fotografia, como era no seu início. Mas agora, ao invés de achar ruim, está aberto ao inesperado, está à espera da ação.


O trabalho de Larissa e Bruna se junta ao de Mateus e Maxony e também de Ursula na residência artística e usa o vídeo como plataforma. Fica claro a influência da residência, então, de servir como instrumento pra tirar fotógrafos da sua zona de conforto e construir diferentes narrativas. Além de dar oportunidade a novos talentos da região e aproximá-los da comunidade.

Imigração no Século XX

Uma das primeiras palestras do Fest Foto POA 2019 foi determinante para o público entrar no tema do evento deste ano. Enrico Stefanelli, diretor do festival de fotografia Photolux, de Luca, na Itália, falou como o tema da imigração foi tratado por lá, que adotou este assunto em 2017. Ele também fez uma brilhante retrospectiva de fotos do século XX sobre o tema.

“Desde que existe homem, existe imigração: ponto que queríamos deixar claro pra quem é não é a favor e pra quem usa do medo contra esse fenômeno.” Enrico Stefanelli

O diretor explicou que no festival, procuraram chamar a atenção do público para o fato de que os italianos também são um povo de imigrantes. Por meio das fotos, mostraram dificuldades que italianos sofreram quando eram eles os imigrantes, sobretudo nos Estados Unidos, onde sofriam preconceitos.


Durante sua fala, Enrico exibiu muitas fotos históricas para a plateia. Depois de mostrar muitas imagens do início do século, da época das imigrações italianas para o resto do mundo, ele passou para o fluxo contrário: a partir dos anos 1970, a Itália passou a receber imigrantes. Por fim, ele chegou nas imigrações modernas, como em 2015, quando o país recebeu 800 mil imigrantes, com grande afluxo de pessoas que fugiam da guerra na Síria. Um dos vídeos exibidos da guarda fronteira italiana trazia imagens muito fortes sobre o resgate no mar aos imigrantes. Outro vídeo, este do fotógrafo Francesco Zizola, trouxe todo o sofrimento das migrações modernas para o público. Assista no link.


Mais um tema que o festival da Itália procurou retratar foi a integração: os imigrantes convivendo na sociedade italiana, inclusive com trabalhos qualificados, com ocupações conceituais como pinturas e esculturas.


A palestra de Enrico Stefanelli foi excelente, capaz mesmo de alterar percepções sobre o tema por meio de imagens fortes e argumentos contundentes, baseados em fatos históricos. Ele fez muito mais que só mostrar como é seu festival e fazer divulgação, ele realmente mostrou e contextualizou a crise, mostrou fotos e vídeos e soube responder as questões do público sobre a imigração na Itália e a realidade de seu país. Palestras como esta enriquecem muito a percepção do público sobre o poder da fotografia, mas não só: enriquecem sua visão de mundo.


Cidades

“Se foto serve pra olhar o mundo, que essas exposições sirvam pra gente discutir o mundo. E não fique só fotógrafos falando de fotografia em uma retro alimentação de portfólio.” Marco Antonio Filho

Foi com esta frase marcante que o mediador da palestra “Urbe global, cidades randômicas” iniciou os diálogos com Letícia Lampert e Lívia Pasqual. De fato, a fala das duas artistas serviu para que o público pudesse repensar o espaço ocupado pelas cidades nesta sociedade contemporânea.


Letícia contou sobre um projeto no qual fotografa as cidades a partir das janelas de onde não é possível ver o céu, apenas outros prédios. Assim, ela procura instigar o olhar para aquilo que falta, que não está ali.

“No momento que não vejo mais a cidade, só vejo a vida do outro, e não a paisagem, e consequentemente eu também estou na vitrine. Comecei a visitar prédios em Porto Alegre, observando, por um lado, a paisagem que não vejo e, por outro, a vida que brota pelas janelas. Visitei ambientes de vida privada, e só fotografei lugares que não aparecia céu de jeito nenhum. Quando você apaga a referência geográfica da cidade, apaga a sua identificação, assim ficam todas iguais. Pra mim, minhas fotos não são coleção de prédios, mas uma coleção de paisagens barradas. As pessoas, ao verem meu trabalho, acham que foi fotografado na sua cidade, por mais que não seja, e pra mim isso é muito emblemático.” Letícia Lampert

Em outra série de seu projeto, Letícia passou a recortar e editar pedaços do céu que sobravam em suas fotos, apenas nesgas. Depois, passou a fazer o mesmo com o verde que sobrava na cidade, chamando a atenção para o quão pouco era. Ainda, faz colagens, encaixando prédios de diferentes cidades. Veja suas obras no site.

“Causar um estranhamento na imagem é um jeito de fazer a pessoa parar nela, sem só passar por alguns segundos. Tenho vontade de fazer o olho parar, que é uma resistência a essa rapidez. Gosto quando alguém diz que, depois de ver meu trabalho, fica só reparando no espaço entre prédios. Ou seja: a imagem modificou seu olhar.” Letícia Lampert

História

Uma mesa que deixou claro que o Fest Foto veio não para discutir apenas fotografia, mas também o nosso importante período histórico foi a composta por Gabriel Carpes e Clarice Speranza, com mediação de Marco Antonio Filho. No diálogo “Faltam mil anos de história”, Gabriel contou um pouco de seu trabalho no auge da crise política, nos quais muitos protestos ocorriam nas cidades, entre 2016 e 2018. Como artista, ele sentiu uma ânsia de registrar o que estava ocorrendo, mas logo começou a fotografar o entorno desses movimentos.


Gabriel contou que começou a fotografar outras coisas ao redor desses protestos, momentos que não pertenciam a isso, como cenário urbano de Porto Alegre. Assim, registrou como centros urbanos estão mudando nessas três décadas. Nesse ambiente, ele começou a ver uma melancolia, uma futilidade em muito das coisas que haviam sido construídas dentro dessas cidades. “Como se a crise fosse um grande barulho, e estivéssemos brigando por algo que não sabíamos bem o que era”, definiu.

“O espaço construído é a mais forte manifestação de um tempo, é o que ecoa para além de nossas vidas. Passamos tantos anos construindo, e isso agora me parecia fútil. Comecei então a entrar nesses espaços à procura de onde a crise se manifestava, e passei a entender que estava à procura das imagens dessa crise, que imagens escolhemos pra ela, o que esses espaços podiam criar no meio disso, como por exemplo um prédio do governo, que imagem isso passa? Talvez seja o fim da redemocratização brasileira, mas isso é algo que só pode ser definido no futuro. Seria então um pequeno pedaço de um retrato de uma época.” Gabriel Carpes

A mesa trouxe Clarice Speranza, que é jornalista com mestrado e doutorado em História. O mediador Marco Antonio Filho explicou a importância de ter alguém com este conhecimento na palestra: expandir a fotografia a fim de discutir as questões do mundo, e não ficar apenas falando de questões estéticas. Seu objetivo era analisar também o trabalho de Gabriel perante o período histórico.

“Nossa geração viveu um momento de ápice da nossa democracia, e quando há ruptura, às vezes nosso movimento é botar tudo abaixo pra começar tudo de novo, e é bom buscarmos pra ver como funciona. Nos falta pensar as coisas de outros pontos, para além de nosso cotidiano extremamente limitado.” Marco Antonio Filho

Clarice explicou que precisamos evoluir da perplexidade pra uma análise mais racional dos fatos.

“Como o futuro vai nos ver é uma questão, mas como nós estamos nos enxergando? Vivemos tempos difíceis, mas serão tempos que vão mudar o mundo. Se pra melhor ou para pior não se sabe, não nos cabe julgar. Nos cabe viver e lutar pra que seja o melhor.” Clarice Speranza

O diretor do Fest Foto, Carlos Carvalho, participou da conversa, colocando a sua angústia perante a nossa incapacidade de prever os fatos.

“Vejo que trabalho do Gabriel é quando ele se afasta, que é quando começa a fotografar o acontecimento político, já que as manifestações são só espasmos. Eu não vejo esse alerta na história que eu vejo no trabalho do Gabriel. Não quero mais ser iludido pela sequência de fatos. Quando ele narra nesse trabalho que apresenta, é isso que sinto falta na nossa construção de história. Acho que isso é um desafio não só pra história, mas para a sociedade que compra muito fácil as versões. E a surpresa que temos diante dos fatos se baseia na nossa ignorância. Se soubéssemos fazer a leitura correta, a única dúvida seria quando aconteceria. Se ela nos pega apáticos, sem saber o que fazer, é porque não sabemos o que acontece. Não estou culpando a História ou historiadores, mas deve vir da sociedade essa exigência. São reflexões e angústias minhas. Se vejo trabalho da fotografia contemporânea quase que intuitiva dos fotógrafos, não vejo correspondência da sociedade de entender os outros lados da questão.” Carlos Carvalho

Para Clarice, é preciso pensar com perspectivas de que, se algo está desmoronando, algo também está sendo construído, já que o desalento também pode nos trazer uma espécie de cegueira. Para isso, ela cita a mudança no ensino de história, que busca incluir novos sujeitos, como mulheres e escravos.

“A questão da História é que só se consegue compreender com certo distanciamento, com o decorrer dos anos, e não no presente. Há sim mudanças, mesmo que em nível micro, e é importante que a gente se dê conta disso.” Clarice Speranza

Gabriel lembrou então do que Clarice citou no início de sua fala: como era difícil para pessoas que viveram durante a época da Revolução Francesa - foi horrível para quem a viveu, mas depois ela mudou o mundo.

“Eu acho que esse momento que vivemos também vai ecoar, eu só não sei se ele vai ecoar de uma forma diferente do que sentimos. A nós, artistas, cabe registrar esse momento. A História também se estuda muito com arte. Arte que nos informa sobre história em diferentes níveis.” Gabriel Carpes

O fotógrafo lembrou que muito se falou do desfile da Mangueira deste ano - escola de samba do Rio de Janeiro, que fez uma releitura de heróis nacionais, e exaltou heróis negros e índios. Houve críticas falando que não era a História oficial, mas no fim, conforme afirmou Gabriel, se descobriu que o enredo era baseado na História produzida pela academia. Ele ainda lembrou que também se crítica muito que determinado fato não está na mídia, mas depois alguém vê que estava sim. “Uma das vantagens da democracia é que há vários pontos de vistas, vários concordam com a gente. Mas vários discordam também.”

O mediador Marco Antonio questionou a Gabriel porque registrar uma manifestação, já que, para um historiador do futuro, bastaria olhar linhas do tempo do Facebook para ter acesso a muitas imagens destes momentos.

“O fotógrafo não precisaria ir nessas manifestação por isso. Qual papel do fotógrafo nesses momentos de crise? Porque fotógrafo lida com a superfície do mundo, e em momentos de crise o que está mais evidente é a manifestação.” Marco Antonio Filho

Para Gabriel, a resposta está em perceber a oportunidade de que o óbvio já estava sendo feito, o que permitiu a ele se aprofundar em outras questões.

“A vantagem de nosso tempo é que tem muitos fotógrafos, que também foi por isso que resolvi abordar esse tema de um jeito mais sutil. Até porque as fotos que devem existir das manifestações, já estavam sendo feitas por outras pessoas que talvez tivessem outros meios pra registrar. O fato de que tinha outros fotógrafos fazendo isso me permitiu fazer o que fiz. Se pensar no início da fotografia, que era ferramenta de registro, eu não poderia fazer isso. Temos que tirar vantagem dessa inundação de imagens. Nosso papel é contribuir para o retrato de um tempo. Com nosso ponto de vista, que ache que é o melhor. Existe o suficiente de nós pra falar de tudo, e temos que contribuir positivamente para o retrato de algo. Porque é tempo de vermos que nenhum de nós vai conseguir o retrato de algo sozinho por inteiro.” Gabriel Carpes

Mais do que trazer respostas, esta mesa do Fest Foto trouxe excelentes perguntas, e permitiu a todos perceber que o que nossa época representa só poderá ser compreendida no todo no futuro. Mas é por isso que a arte é tão importante, já que ela também é um retrato de sua época, tal como pode ser a História. A arte é um ótimo local para transferir não as nossas certezas, mas o que estamos enxergando no momento, nossas angústias perante o que isso representa, e o que estamos tentando fazer para construir nosso futuro. O trabalho de Gabriel, apenas por suscitar este tipo de questão, já teria sido absolutamente bem sucedido. E é isso que a arte precisa, às vezes: levantar a bandeira da dúvida, do questionamento, do aprofundamento do que está por trás do barulho, do que se esconde nas esquinas tranquilas que estão à margem das manifestações, no que está escrito no silêncio para além do barulho dos protestos.


Talvez, o que nos caiba é recontar a história muitas vezes, sob muitos pontos de vista, até que possamos entendê-la no futuro. E o papel da arte é ser um dos instrumentos dessas vozes, seja na fotografia, na literatura, na pintura, na escultura. É como nos disse a escritora Valeria Lusielli:

“Nesse meio-tempo, enquanto a história continua, a única coisa a fazer é contá-la de novo e de novo, à medida que ela se desenrola, se desdobra e se bifurca, enovelando-se em torno de si mesma. E ela tem que ser contada, porque antes que qualquer coisa possa ser entendida, precisa ser narrada muitas vezes, em muitas palavras diferentes e de muitos ângulos diferentes, por muitas mentes diferentes.”

Frases do livro Tell me How it Ends, da escritora Valeria Lusielli. Presentes no ensaio do crítico literário James Wood. Publicado originalmente na revista The New Yorker em fevereiro de 2019 e traduzido para o português por Renato Marques. Disponível no blog da Cia das Letras.





América do Sul

A última palestra do domingo no Fest Foto trouxe o fotógrafo Ignacio Iturrioz, vencedor do Prêmio Uruguaio de Fotografia para falar sobre o seu projeto “Purgatório”, com mediação de uma das diretoras do festival, Sinara Sandri. Ignacio mostrou suas fotos, que também faziam parte das exposições do evento. Nelas, ele retratou a vida de 900 moradores do Palacio Savio, icônico edifício que se encontra na principal Praça de Montevidéu. A sua fachada é muito fotografada por turistas, mas a maioria das pessoas não faz ideia do que se passa em seu interior – não há janelas, não tem água no verão, seu elevador está sempre estragado. Quem vive ali são pessoas à margem da sociedade.


As fotos de Ignacio são ótimas, e o projeto é muito interessante. E a conferência com ele se tornou ainda mais importante devido às perguntas feitas pela mediadora Sinara, que permitiram ao fotógrafo se aprofundar no tema e fazer reflexões sobre o que retratou. Este é um ponto que precisa ser pensado: o papel do mediador nas palestras. Mais do que servir de apresentador, ele deve de fato perguntar, fazer conexões, envolver os convidados e a plateia – e, mesmo quando esta última não tiver perguntas, o que é natural, pois quem assiste acabou de conhecer o projeto, deve ter questões pré-estabelecidas para falar com os convidados no palco.


Outra mesa mediada por Sinara foi a intitulada “Sonho Sul Americano”, com o fotógrafo chileno Cristian Ochoa. A mediadora pontuou que o festival iniciou com uma palestra sobre a rota de imigração no Mediterrâneo, e finalizou com uma rota migratória na América do sul – o que é muito importante, pois tendemos a pensar que isso não ocorre próximo a nós. Mas, como aprendemos nesta palestra, a Colômbia lidera no número de refugiados internos no mundo, devido a problemas por guerras e conflitos internos.


Cristian, que também é um migrante, retratou a questão da imigração de colombianos para o Chile, que é seu país de origem, sobretudo para Antofagasta – cidade na qual ele foi morar. Ele mesclou fotos e textos em seu projeto, feito em 2013. O fotógrafo explicou, na sua palestra, sobre os embates na população chilena, sobre quem era contra e quem era a favor dos imigrantes colombianos. A mídia chilena, muitas vezes, transmitia informações falsas contra imigrantes, reproduzindo discursos de poderes estabelecidos. As multas, quando ocorriam, eram irrisórias. Ele ainda fez outros projetos com imigrantes, como entregar câmeras descartáveis a eles. Outra ideia sua foi que os filhos explicassem o processo de imigração dos pais por meio de fotos.


Exposições

Para além das 12 exposições dos projetos de residência artística, o Fest Foto seguiu a sua tradição de trazer excelentes mostras visuais a Porto Alegre. Eram 54 trabalhos que ocuparam as salas da Fundação Iberê Camargo, desde convidados, até mostras coletivas temáticas e selecionados na convocatória, de diversos países, como Brasil, Argentina, Irã, Canadá, Bélgica, entre outros. Todas com o tema referente ao evento. Desta forma, as exposições estavam muito fortes, tanto em imagens quanto em conceitos, mas era necessário, já que não tem como falar de diáspora de uma forma leve.


Talvez a mais leve fosse a que mais chamasse a atenção, o projeto Humanae, da artista carioca radicada na Espanha, Angelica Dass. Angelica tem feito retratos de pessoas ao redor do mundo, nos quais a cor de fundo da fotografia se relaciona à cor que ela registra em uma parte específica do rosto de cada um, deixando em evidência o tom de pele. O resultado é belíssimo e inspirador - traz uma sensação boa de linearidade e igualdade entre todos nós. Na exposição, notamos que mesmo entre indivíduos que costumamos nomear como de mesma cor, tem tons de pele bem diferentes no fim. Que superioridade ou inferioridade poderia ser proclamada então, se somos todos tão únicos?


As exposições estavam divididas em três eixos temáticos: deslocamentos e diásporas de populações por fatores políticos, econômicos ou crises ambientais; o híbrido como resultado do contato e resistência entre pessoas; a reconfiguração de sentidos pela dispersão de imagens.


Conclusões

Mais uma vez, a fotografia nos transporta para uma realidade diferente da nossa e nos faz ter contato com o mundo de outras pessoas. Isso é de praxe nos festivais de fotografia que frequentamos: aprendemos sobre outros assuntos a partir dos projetos fotográficos. Mas o que o FestFoto fez em 2019 foi ainda mais além. O impacto das palestras e das exposições fez com o que o espectador pudesse, de fato, se tornar mais humano, mais empático com a situação vivida por milhões de pessoas ao redor do planeta que precisam deixar para trás suas casas e se aventurar em uma terra distante em busca de uma vida melhor. Não há como ficar passivo vendo tanto sofrimento – mas não foi só por meio do sofrimento que nos sensibilizamos a respeito da diáspora no festival. Os argumentos apresentados, a noção de que o ser humano é, por natureza, um ser que imigra, já que todos nós temos como ancestral comum os africanos, nos fez entender de uma vez por todas que as fronteiras são muros fictícios inventados por nós. Não há solução fácil para a crise migratória, mas entender o seu contexto pode mudar muita coisa. E é essa aproximação com o problema que o Fest Foto trouxe.


Para além do tema pertinente e impactante, o Fest Foto está seguindo a risca seu planejamento, já inaugurado na edição anterior, de se preocupar com a geopolítica, deixando de olhar só para o local. Mas mais que isso, o festival está muito preocupado em não ser um evento no qual os fotógrafos ficam apenas falando de fotografia. Se as imagens são um dos canais mais poderosos de comunicação neste século, temos sim que aproveitar todo o seu potencial. Não é possível que fotógrafos se reúnam apenas para discutir técnica, ou apresentar projetos apenas para provar o seu valor. Pode ser isso, mas tem que ser mais. As histórias por trás das fotos, o seu contexto contam muito mais do que como é feito o registro. O Fest Foto não poderia estar mais certo: seu papel é de promover discussões para além do universo imagético.


Mas também é, com certeza, de incentivar a fotografia, e também neste papel ele acerta. O resultado das residências artísticas prova como temos talentos locais que, incentivados e guiados, podem produzir projetos incríveis como os que vimos neste ano. Além da excelente curadoria das exposições, e das convocatórias que permitem a fotógrafos do mundo todo se inscreverem pra terem suas fotos exibidas durante o evento. E a já tradicional leitura de portfólios: foram 36 inscritos neste ano, um recorde. E o ganhador da leitura ganhou uma bolsa para participar do Festival de Fotografia de Houston, nos Estados Unidos. Todas oportunidades que, de fato, mudam carreiras. Por tudo isso, o Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre se revela em um dos mais importantes do país.


Texto: Sabrina Didoné (jornalista - 0018277/RS) e Liliane Giordano (mestre em Educação: arte, linguagem e tecnologia)

Fotos: Liliane Giordano

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